De acordo com a Organização Mundial de Saúde o conceito de saúde não se define somente pela ausência de doença, sendo algo muito mais abrangente e subjetivo, que tem em linha de conta o bem-estar físico, mental e social de cada um.

O início da minha formação em Medicina Geral e Familiar fez-me perceber que, muitas vezes, a abordagem completa do doente, muito mais do que somente a abordagem da sua doença, é crucial para o atingimento ou preservação do seu bem-estar e qualidade de vida. A relação de proximidade que se estabelece com os doentes nesta especialidade, permite conhecê-los como um todo e ter perceção da influência que os seus diferentes contextos (social, religioso, político, económico ou familiar) têm no seu dia-a-dia e na sua saúde.

Para a maioria dos doentes, não basta o controlo da sua doença, é necessário o estabelecimento de um equilíbrio emocional e existencial concomitantes. Estas premissas são particularmente importantes perante patologias crónicas, nas quais, muito mais do que tratar e curar, surge a necessidade imperiosa de cuidar do doente, ou seja, surge a necessidade de, progressivamente, se dar início ao ato de paliar.

Paliar, porém, ainda tem associado a si uma conotação demasiado negativa, que faz desta intervenção uma espécie de sentença de morte inevitável. Para a maioria dos cidadãos, os profissionais de saúde, sobretudo os médicos, ainda são vistos como autênticos “guerreiros”, capazes de fazer frente a qualquer enfermidade com sucesso, ou seja, capazes de debelar a doença e curar por completo o doente.

Mas será mesmo esta capacidade de tratar e curar, a única vertente do sucesso médico? Estarão então, à partida, os doentes crónicos condenados ao insucesso?

Esta aparente dependência mútua entre sucesso e cura, ainda patente na nossa sociedade, resulta num sentimento de abandono nos doentes e nos seus familiares, quando os profissionais de saúde lhes comunicam a necessidade de introdução de Cuidados Paliativos como parte integrante do seu tratamento. Como se assistissem impotentes ao afastamento progressivo dos seus cuidadores e como se o facto de terem parado de tentar curar, equivalesse a parar de lutar pelo seu doente.

A comunicação da necessidade de paliar o doente é por isso, muitas vezes, adiada até ao limite, não só pelo desconforto causado ao doente e à família, mas também em parte, pelo desconforto causado no próprio profissional, que vê associado a si o fracasso e o insucesso. Paliar ainda é entendido como o último recurso, como a última linha de intervenção quando “não há mais nada a fazer”. Por esta razão, importa esclarecer o conceito de paliar e, progressivamente, dar mais ênfase aos Cuidados Paliativos como método terapêutico válido para o doente, quando “ainda há muito para fazer por ele”. Paliar é muito mais do que amparar a morte. É centrar os cuidados médicos no bem-estar e na qualidade de vida do doente e da sua família, através da promoção de uma abordagem global e holística do seu sofrimento. É prestar cuidados de saúde multidisciplinares que permitam abordar as diferentes vertentes dos doentes e das famílias, em termos físicos, psíquicos, sociais e espirituais. É oferecer assistência com base nas necessidades (do doente e da família) e não apenas com base no diagnóstico ou no prognóstico da doença. É evitar a realização de intervenções diagnósticas ou terapêuticas fúteis, que nada mais acrescentem além de angústia e dor.

Por estas razões, quando indicada, a sua introdução deve ser a mais precoce possível. Os Cuidados Paliativos são a demonstração clara de que o profissional de saúde deve ser treinado para perceber e respeitar o que é mais importante para o doente, tanto como para tratar e curar a doença. Eles não visam fazer do médico um “guerreiro” e, por isso mesmo, um sucesso terapêutico pode passar por não curar o doente, mas antes por fazer uma referenciação atempada a uma equipa multidisciplinar que presta este tipo de cuidados e que foca a sua atenção no que realmente é importante para o doente e para a sua família.

Apesar de este ser o objetivo dos Cuidados Paliativos, reconheço que ainda existe um longo percurso até os mesmos fazerem parte da nossa realidade e a referenciação ser simples e célere. Há muito trabalho pela frente, quer em termos de organização dos cuidados de saúde, quer em termos de desmistificação do conceito. O respeito pelas reais necessidades dos doentes, a aceitação da finitude da vida humana e da incapacidade de curar todas as doenças e a alteração da visão de sucesso ou insucesso do profissional de saúde, são alguns pontos fulcrais, que podem ser a chave para a mobilização de energias, no sentido de fazer dos Cuidados Paliativos uma realidade nacional.

Artigo de opinião da autoria de Sílvia Castro Alves – Médica Interna de 3º Ano de Formação Específica em Medicina Geral e Familiar na USF Nova Salus, Vila Nova de Gaia